segunda-feira, 20 de outubro de 2008

A REALIDADE NUA E CRUA

(Reportagem vencedora do I Prêmio DEPCOM de Jornalismo na categoria Texto Informativo.)




Piranha, psicóloga da noite, cortesã, dadeira, garota de programa, santa do pau oco, camélia, mulher da vida, profissional do sexo, secretária do amor, fodedeira, mulher marginalizada, rampeira, galinha, dama da noite, quenga, puta, Maria Madalena, vadia, biscate, meretriz, vagabunda, Rosa Palmeirão, mulher da vida fácil.”
Segundo Marina Martins, em Vozes dos anônimos, assim são conhecidas na sociedade as protagonistas que compõe o enredo de uma história de exploração, de preconceitos e de exclusão social. Mulheres com uma estrutura familiar fragilizada, que são obrigadas a utilizar o corpo como uma ferramenta de trabalho e como forma de sobrevivência, porque é a forma mais acessível numa realidade de pobreza e falta de oportunidades.
Que pensamentos podem ocorrer a quem vai encontrar com uma prostituta em plena praça pública, pagando por um serviço que não é o comum? Ansiedade, apenas ansiedade. Ao telefone ela me pareceu um tanto descontraída e disposta a falar, espero que minhas ferramentas de trabalho (um gravador e uma caderneta de anotações) não a assustem. Olho pro relógio e percebo que apesar da minha ansiedade ainda faltam 5 minutos para o horário marcado. Tenho a impressão de que já estou esperando há mais de uma hora. Aproveito para dar uma última olhada nas minhas anotações.
As luzes amarelas que enfeitam os troncos das árvores dos canteiros centrais da Avenida Carlos Hugueney dão um toque de alegria à cidade. Na praça, a “fonte luminosa” jorrando águas coloridas encanta os fiéis que saem da missa. O padre oferece a mão ao beijo das carolas que insistem em permanecer na frente da igreja.
Sentado num banco de concreto vejo atravessar a faixa de pedestre uma mulher de miniblusa rosa e saia curta, o andar um pouco desconcertado, devido à altura das sandálias. O caminhoneiro pára para deixá-la passar, põe a cabeça pra fora da janela do caminhão e lhe diz algo. Ela esboça um sorriso, puxa a microssaia para baixo e continua caminhando na direção da praça. São 20h45.
- Pontualidade britânica! Procuro quebrar o gelo com essa frase. Apresento-me, ela me beija o rosto. Quase não controlo a vontade de olhar em volta, pra ver se as pessoas nos observam, mas me detenho.
A maquiagem exagerada, a roupa extravagante e a maneira de falar tão característica, me fizeram ter a certeza de que eu não iria entrevistar apenas uma mulher, entrevistaria a genuína representante de uma classe de mulheres que não são contempladas com ações governamentais, vítimas de preconceitos, um grupo excluído socialmente.
- Que que ocê qué sabê, bem? Pode perguntar que eu te conto tudo!
Francileide da Silva inicia nossa entrevista num tom de deboche. Apesar de tentar parecer descontraída e à vontade, não me olha nos olhos, mantém-se cabisbaixa, quando o olhar não divaga pela praça.
Não tem o padrão de beleza imposto pela sociedade e nem o corpo escultural das garotas de programa que vemos diariamente na mídia. A pele negra e o cabelo crespo só reforçam o preconceito. O sofrimento tirou da jovem prostituta de 24 anos o frescor da juventude. A aparência não condiz com a pouca idade.
- Já sofri como pôcas pessoas no mundo. Meus pais morreu quando eu tinha 12 anos num acidente de carro. Fui morar com minha vó, mãe do meu pai. Dois dias depois da morte deles eu fui estrupada pelo meu tio, e foi aí que eu caí na vida.
Francileide faz uma pausa, permanece em silêncio alguns instantes, recomeça a falar quase que sussurrando.
- Durante dois ano fui obrigada a dá pro meu tio. Minha vó mi jogava na cara que num era obrigada sustentá vagabunda. Um dia discubrí que estava barriguda, eu tinha 14 ano. Quando contei pra minha vó que tava grávida, e que o pai era meu tio, ela me expulsô de casa, sem dó nem piedade. Fui pra rua sem família, sem nada e ainda grávida.
Ouço, apenas, não a interrompo. Com o gravador ligado, abandono minhas anotações.
- Perambulei pelas rua de Cuiabá dois mêis, cumeno o pão que o Diabo amassô, dano pra qualquer um, em troca de cumida. Além de tudo a barriga ainda tava cresceno. Depois de dois mêis na rua, fui lá pra casa da Romilda, um putero que tem lá na vila, trabalhei trêis mêis sem ganhá um real, só pagano o aborto que quais me matô. Fiquei lá trêis ano, minha vó nunca me procurô. Até hoje eu sô assim, purquê ningueim nunca me deu uma força. A gente se sente muito mal, num tem ningueim pra te amá. Nem a própria família te ama.
- Mesmo depois de déis ano eu não consegui perduá meu tio e minha vó. Quase murrí, eu num ia criá filho de um vagabundo que dizia que era meu tio, então abortei e comecei dá, pra podê comê e tê onde morá.
Em um único fôlego ela segue respondendo todas as perguntas que eu havia preparado em meu bloco de anotações, sem que ao menos eu questionasse. Deixei-a à vontade pra narrar uma história tão conhecida em que a única variante é a carteira de identidade das personagens. Às vezes os olhos lacrimejam, às vezes um sorriso debochado, ela segue contando sua triste história.
- Já acustumei ser tratada como lixo, nunca tive direito a nada e nem razão. Já fui violentada, espancada, já sofri todo tipo de humilhação que ocê pode imaginar e ninguém se importa.
- Um dia depois de fazê um programa, o homem que era um caminhonero me chamou pra viajar com ele. Peguei minhas coisas escondido e entrei nu caminhão dele. Ficamos algumas semanas viajano e na volta pra Cuiabá eu resolvi ficá aqui, e tou até hoje. Aqui pelo menos num é tão perigoso como lá.
Francileide prossegue em sua narrativa e vou percebendo que por trás de um rosto bem maquiado, das unhas vermelhas, do decote, do corpo à mostra, da sensualidade, do erotismo em excesso e do comportamento vulgar, esconde-se uma mulher marginalizada, com seus direitos básicos ignorados e seus desejos esquecidos. Antes de tudo, um ser humano que sonha suprir suas necessidades de mulher comum, que possui medos, aspirações e sonhos e, para isso, precisa de uma atividade que lhe proporcione alguma renda, como qualquer pessoa. Sem escolaridade para um emprego “lucrativo”, a alternativa é fazer do corpo seu instrumento de trabalho.
- Eu queria que as pessoas olhasse mais pra gente, não discriminasse, não jogasse pedra na gente, entendeu? A gente é ser humano. Se eles não pudé ajudá, mais pelo menos não atirasse pedra, olhasse mais pra gente, entendeu? Tentasse pelo menos ajudá com uma palavra amiga. Eu acharia muito bão.
Num período em que a revolução alcançou o endereço tradicional da categoria, a praça pública e as esquinas estão cedendo espaços para outros ambientes, em geral fechados. As atividades estão deslocando-se cada vez mais das ruas para casas de massagem, espaços de shows eróticos e discretos pontos de encontros que pouco têm em comum com os bordéis de antigamente. “As profissionais do sexo” entraram na época da tecnologia. Usam e abusam de celulares e de variados aparatos tecnológicos. Utilizam pseudônimos, usam os classificados de jornais, revistas especializadas e até a internet para vender seus atributos.
Francileide faz parte de uma classe diferente de prostituta contemporânea, atende em um ponto de prostituição próximo à rodoviária, um ambiente noturno hostil, freqüentado por todo tipo de homem.
- Chego antes da meia-noite. Bebemos todos junto lá na casa, coloco uma roupa insinuante e parto para a conquista. Tenho que seduzir o máximo de homens numa noite, para consegui ganhá um dinheiro que dê pra me mantê. Às vezes fico com trêis ou quatro hôme numa noite, a maioria dos meus clientes são caminhonero que estão passano pela cidade.
E quanto é?
- Cobro de 15 a 20 reais por programa, isso depende da cara do cliente. A metade do lucro fica pra dona do cabaré. Nas noites que o movimento lá na casa ta fraco, eu desço lá pra saída do Taquari ou eu venho aqui pra praça cercar os caminhonero.
Olho pro relógio e vejo que meu tempo esgotara. Para não ter que arcar mais uma hora com ela, corro os olhos pelas minhas anotações e ligeiramente levanto um último questionamento sobre assunto que ela ainda não havia abordado, e Francileide prontamente retoma sua fala.
- Bem, um dos meus medo é de engravidá. Não é fácil ser filho de uma puta, vejo o sofrimento das minhas amigas que além de trabaiá toda noite, agüentá essa vida, ainda tem que preocupá com os filhos, por isso é que eu não fico um dia sem tomá anticoncepcional. Mais o meu maió medo mesmo é de pegá AIDS, porque a maioria dos homens que transam comigo não gostam de usar camisinha, e eu não posso me dá o luxo de recusar um cliente.
Pára um instante, fica pensativa, inspira profundamente e prossegue:
- Bem eu não tenho nada, não sou ninguém, mais o meu maió sonho é encontrá alguém que me tire dessa vida. Um homem que me ame de verdade. Quero deixá de ser puta, ter filhos, amar alguém, porque a muié quando não é amada ela fica amarga e eu não quero perder a parte boa que ainda existe em mim.
As horas passaram sem que ao menos eu percebesse a velocidade. Francileide se despede de mim após receber pela hora reservada à entrevista e se prontifica caso eu volte a precisar. Sentado ainda no banco de concreto vejo-a se distanciar da praça, fico imaginando como somos egoístas a ponto de discriminar alguém que busca desesperadamente um pouco de conforto, carinho e de atenção.

Isaac Fernades
Texto publicado no jornal laboratório "Provocação".

5 comentários:

ComunicAia disse...

Agora sim, Isaac, esquentou a chapa! Mas senti falta no seu perfil do cantor e compositor.

QUEILA CARMO disse...

Será que o certo é apenas eu te parabenizar, acredito que não...Um instante de sua vida ouvindo esta história tenho certeza que causou algum arrepio, não sei dizer ao certo se foi por ouvi-lá ou por escrever esta "realidade nua e crua", Isaac, trabalho como este faz com que enxergamos a realidade como é não como as expôem, Parabéns. Texto muito bem elaborado, e um objeto de estudo não só de reflexão, mas de realidade que imaginamos nunca poder está presente nas nossas vidas. Parabéns mesmo...

Hiala Araujo disse...

ficou mt bom...

Hiala Araujo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Legal que vc publicou esse texto realmente ficou muito bom.